28 janeiro 2006

Hamas vs. Likud

Este artigo é israelense. Achei interessante, por conter um certo otimismo, ao sustentar que em certos casos os radicais que sobem ao poder acabam promovendo reformas importantes, que ajudavam a bloquear no passado

Folha de S. Paulo - ANÁLISE

Apresentando o Hamas: o novo Likud

BRADLEY BURSTON
DO "HAARETZ"

Senhoras e senhores, queremos apresentar o Hamas -o novo Likud. Sim, 1977 está se repetindo. Mais uma vez, tudo o que conhecíamos está errado. Isso soa familiar? O partido que ocupa o poder, o único partido que já esteve no poder, o partido que formou um povo mostrou-se corrupto até o âmago. Há muito tempo já ele ignora as carências sociais gritantes. Ele se mostrou incapaz de promover a paz. É inepto quando se trata de garantir segurança à população.

O clientelismo, a desigualdade social, a corrupção, a construção antiquada e desajeitada de instituições interligadas e profundamente antidemocráticas, tudo isso não tem fim. Então, um dia, os eleitores que há décadas suportam e sofrem tudo isso se revoltam. Da noite para o dia, um sistema virtualmente unipartidário é derrubado com a vitória espantosa de um rival enxuto, limpo e dinâmico, um movimento que há anos vinha sendo rejeitado por seu passado violento e sua visão inflexível e maximalista de quem deve ser dono da Terra Santa por inteiro.
Se o palco da história freqüentemente é iluminado pela ironia, a proximidade da implosão do Likud e da ascensão do Hamas podem conter lições para todos nós, e também para o Hamas. Em 1977, o Likud de Menachem Begin e Yitzhak Shamir era ridicularizado no exterior -e pela esquerda em nosso próprio país-, retratado como grupo chefiado por líderes militares que espalhavam o terror, um movimento cujas raízes estavam em braços armados que haviam cometido atentados a bomba e ataques a tiros, a sangue frio. Era visto -incorretamente- como inexperiente em tudo, menos em ser oposição. Era visto -ingenuamente, pela esquerda- como pouco mais do que uma excrescência do Irgun e do Lehi, herdeiros de Deir Yassin, implacável na oposição que fazia à cessão ou partilha de territórios.

Foi no dia 17 de maio de 1977 que o Likud de Begin derrotou o Partido Trabalhista. Exatamente seis meses e dois dias depois, o primeiro líder de um país árabe a publicamente pôr os pés em solo israelense -um homem que dera a ordem para seus exércitos atacarem Israel no Yom Kippur- apertou a mão de Begin e foi de carro com ele até Jerusalém, onde, no dia seguinte, iria discursar perante o Knesset. Foi o Likud que iria entregar cada centímetro do deserto do Sinai -89% de todos os territórios capturados na guerra de 1967- em troca de um tratado de paz com o Egito.

Foi o Likud, naquele que foi efetivamente seu último e, pode-se argumentar, suicida ato como partido político, que transformou por completo a natureza do discurso político em Israel, ao promover a retirada unilateral da Faixa de Gaza. Mesmo que Anuar Sadat fosse fadado a tornar-se um "shahid" pela paz, sua viagem a Jerusalém sugere um conceito mais amplo: se tanto Israel quanto seu inimigo árabe podem declarar vitória na mesma guerra, então talvez ambos também possam alavancar essa declaração para chegar a alguma forma de paz.
Há analistas no exterior que já descreveram a vitória do Hamas, nesta semana, como "o fim do unilateralismo". Entretanto ela pode ser apenas seu começo. Se é ou não, se Israel vai de fato retirar-se de uma parte maior da Cisjordânia, isso vai depender em grande medida de o que o Hamas decidir fazer com suas armas. Se elas forem destinadas a atacar israelenses, então nenhum governo em Jerusalém poderá sugerir uma retirada ainda maior. Mas, se os fuzis forem destinados a manter a ordem e a implementar uma trégua, é bem possível que uma retirada se realize, e então o Hamas poderá reivindicar mais uma vitória. Ademais, se for conservada a calma, também Israel poderá reivindicar mais uma vitória.
Não será simples para nenhum dos lados. A dor provocada por milhares de mortos ainda é muito recente. Para o Hamas, o salto ideológico será tremendo. Embora alguns setores no Hamas tenham falado discretamente em encontrar uma maneira de conviver com as fronteiras de 1967, a concessão, para eles, será tão dolorosa quanto o foi abrir mão do credo da Grande Israel de Begin, que originalmente previa um Estado judaico em tudo o que hoje é Israel, além de todos os territórios e o atual reino da Jordânia.

Quão provável é o cenário em que o Hamas mantém a calma, na esperança de uma retirada israelense? Até que ponto nossa realidade atual constitui um cenário provável? Em questão de 20 dias, tanto Israel quanto a Palestina terão testemunhado o fim de sua geração fundadora, a geração que parecia capaz de enterrar a todos nós.
Tradução de Clara Allain